RADIOTERAPIA DE DOENÇAS BENIGNAS

Miguel Torres Teixeira Leite*; Ana Paula de Freitas Porto Fonseca**; André Lima Souza Castro***

* Radiooncologista do Instituto de Radioterapia São Francisco, Radioterapia do Hospital Felício Rocho, BH

** Radiooncologista da Radioterapia do Hospital Felício Rocho, BH

*** Físico Médico do Instituto de Radioterapia São Francisco -  BH,

Doutorando do Departamento de Engenharia Nuclear da EE-UFMG.

outubro de 2015


Introdução

A radioterapia pode ser utilizada no tratamento de inúmeras doenças benignas, como comprovam descrições do seu emprego em angiofibromas da nasofaringe, angiomas, ameloblastomas, artrites, artroses, bursites, cistos ósseos aneurismáticos, doença de Peyronie, espondilite anquilosante, malformações arteriovenosas, sinovites, tendinites, linfangiomas, fibromatose desmóide agressiva, contratura palmar, furunculose, infecção por fungos, granuloma piogênico, hemangioma vertebral, oftalmopatia de Graves, hemangioma vertebral, hidradenite, formação óssea heterotópica, histiocitose, quelóide, miastenia grave, nevralgia do trigêmeo, para gangliomas, sinovite vilonodular pigmentada, prevenção de ginecomastia e pterígio (THE ROYAL COLLEGE OF RADIOLOGISTS, 2015; SEEGENSCHMIEDT et al. 2015).

Até meados da década de 1960, a radiação ionizante foi amplamente utilizada nesses casos, mas teve sua indicação restringida após o avanço das terapêuticas medicamentosas ou cirúrgicas e após a constatação do aumento da frequência dos tumores radioinduzidos (TRI). A descoberta da carcinogênese radioinduzida teve como consequência a drástica redução da utilização da radioterapia nas doenças benignas, principalmente nos países da Europa Ocidental e em menor escala na Europa Central e Oriental. 

Hoje o interesse pelo emprego da radioterapia em doenças benignas tem ressurgido, principalmente em casos de curso clínico mais agressivo e invasivo que apresentem repercussões cosméticas e funcionais importantes ao paciente ou que se traduzam em atentado à vida.

Pesquisas realizadas sobre tal procedimento, em todos os continentes, mostram ampla variação de indicações e de esquemas terapêuticos. Questionamentos quanto a sua efetividade e riscos têm sido respondidos à luz de novos dados clínicos e de estimativas de doses. Hoje existem evidências de estudos randomizados que dão suporte a algumas indicações clínicas, mas as limitações também existem, pois a maior parte dos trabalhos se baseia em estudos de casos, e muitas séries reportam pacientes tratados com técnicas antigas de radioterapia, o que limita a intercomparação quando técnicas mais modernas são utilizadas (LEER et al. 1998).

Duas importantes publicações foram recentemente divulgadas, a do grupo Cooperativo Alemão para Radioterapia de Doenças não Malignas (GCG-BD) liderado por Seegenschmiedt, que publicou em 2015 abrangente revisão do tema (SEEGENSCHMIEDT et al. 2015) e a do Royal College of Radiologists que formou um grupo de trabalho para também promover uma ampla revisão do assunto, publicando em 2015 um manual de condutas baseadas em evidências (THE ROYAL COLLEGE OF RADIOLOGISTS, 2015). O grupo germânico informa que o tratamento de doenças benignas é hoje oferecido em mais de 300 centros de radioterapia na Alemanha onde são anualmente tratados 50.000 pacientes com lesões não neoplásicas.


Mecanismo de ação

A radiação pode interagir com a matéria e desencadear complexos mecanismos de ação gerando efeitos diversos. Existem alguns princípios radiobiológicos que acabam por justificar a utilização da radioterapia nas doenças benignas como nos processos inflamatórios em que a radiação modula diferentes vias imunológicas, impedindo a progressão da inflamação.

Estudos pré-clínicos comprovam efeitos antinflamatórios em doses superiores a 0,5 Gy. A cascata de eventos antinflamatórios, mediada pelas células endoteliais, se inicia com o recrutamento de células mononucleares e granulócitos para o sitio do tecido lesado,. A radiação, ao inibir a neoformação vascular, diminui a adesão leucocitária. Atuando nos monócitos, diminui a produção de iNOS (indutor da síntese de óxido nítrico) que é responsável pela permeabilidade vascular, formação de edema e dor (FREY et al. 2015; REICHL et al. 2015). O quadro 1 lista os principais mecanismos de ação da radiação neste contexto.

 A completa compreensão dos diversos mecanismos envolvidos e os fatores de mediação da ação da radioterapia em doenças benignas ainda permanecem sem esclarecimento. 


Indicações e respostas

O quadro 2 destaca as principais enfermidades benignas com os níveis de recomendação a serem tratadas com radioterapia, além dos fracionamentos de dose utilizados. Já as taxas de resposta terapêutica aparecem no quadro 3.


O uso da Dose Efetiva para estimar efeitos estocásticos da radioterapia

A exposição do paciente à radiação deve ser sempre justificada, ponderando-se os benefícios terapêuticos que ela venha a produzir em relação ao detrimento correspondente. Portanto a combinação das probabilidades condicionais de indução de câncer letal, câncer não letal, danos hereditários e redução da expectativa de vida devido ao efeito estocástico da radiação devem ser consideradas (CNEN, 2005). 

Estimativas de risco para os danos causados pela radiação têm sido estudadas por diversas organizações, entre elas a International Commission on Radiological Protection (ICRP), National Council on Radiation Protection and Measurements (NCRP), the Radiation Effects Research Foundation (RERF), The United Nations Scientific Committee on the Effects of Atomic Radiation (UNSCEAR), The National Radiological Protection Board (NRPB) e The National Academy of Sciences (NAS). Esses estudos relacionam a probabilidade de ocorrência de efeitos estocásticos com uma grandeza limitante da radioproteção denominada Dose Efetiva (TURNER, 2007). 

A Dose Efetiva (ICRP,1991) é definida como a soma ponderada das Doses Equivalentes HT em todos os tecidos do corpo. Sua unidade no Sistema Internacional é o Sievert (Sv). 

wT é o fator peso do tecido e está relacionado com a sensibilidade relativa do tecido à radiação. Valores de wT são fornecidos pelo quadro 4.

Para o cálculo da Dose Efetiva E, é necessário obtermos, previamente, a Dose Equivalente HT. Essa grandeza é definida como a Dose Média absorvida DT,R por um determinado tecido T em função do tipo de radiação R à qual esse tecido foi exposto (ICRP, 1991). Quando a radiação é constituída de componentes com diferentes fatores de peso, a dose equivalente assume a notação de somatório. A dose equivalente também possui dimensão de Sievert. 

wR é o fator peso da radiação e está relacionado com a eficiência biológica relativa. Valores de wR estão expressos no Quadro 5.

Para descrever a probabilidade de detrimento em humanos, em função da Dose Efetiva, é necessária a criação de um modelo baseado em dados de exposições médicas, acidentes radiológicos ou guerras nucleares capazes de estimar os riscos a baixas doses e baixas taxas de dose e que possa ser aplicado em populações com diferentes características. 

 

Várias organizações regulatórias adotam o “modelo de risco relativo dependente do tempo” baseado nos dados dos sobreviventes da bomba atômica, evento radiológico de maior casuística e acompanhamento. Esse modelo é dado pela razão entre a incidência de câncer na população exposta e na população não exposta. O aumento da incidência natural de câncer foi entendido como sendo uma função da dose, da idade de exposição e do tempo decorrido desde a exposição. Para alguns efeitos, considera-se o gênero como variável. A fim de extrapolar o modelo a baixas doses, é considerado um fator 2 da eficácia de dose e de taxa de dose (DDREF) em relação às estimativas de riscos a altas doses (HALL, 2006). 

 

Os dados epidemiológicos ajustados a esse modelo possibilitaram a criação de coeficientes de probabilidade de efeitos estocásticos por Sievert de dose efetiva. O quadro 6 mostra os valores para indivíduos ocupacionalmente expostos (IOEs) e a população geral.

O objetivo fundamental do modelo descrito é avaliar e comparar exposições ocupacionais a baixas doses resultante de diferentes distribuições de Dose Equivalente nos órgãos. Não obstante este objetivo inicial, a Dose Efetiva pode também ser usada como um indicador aproximado de risco relacionado ao uso da radiação, particularmente, na radioterapia de doenças benignas. A probabilidade de dano devido à radioterapia resume-se, portanto, ao cálculo da dose efetiva e a multiplicação pelo coeficiente de probabilidade apropriado descrito no quadro 6. No entanto deve-se atentar ao fato de que esses dados representam características gerais da população e sabe-se que os riscos de efeitos estocásticos se relacionam com gênero, idade, dentre outros fatores. Dessa forma, a principal contribuição do modelo relaciona-se à otimização do tratamento no que concerne ao planejamento, uma vez que tecidos com valores altos de wT contribuem consideravelmente para o aumento da dose efetiva. 

Para a maior parte dos tratamentos de doenças benignas, a Dose Efetiva varia entre 5 a 400 mSv (JANSEN et al. 2005). Presumindo-se haver uma relação linear entre dose e efeito para baixas doses ou baixas taxas de dose, considera-se o risco de 6% de indução tumoral fatal ou não fatal por Sv na população geral. Estudos mostram que a possibilidade de risco de indução tumoral é nove vezes maior em pacientes abaixo de 25 anos de idade em comparação com pacientes com idade superior a 75 anos, e que pacientes do sexo feminino têm maior risco do que pacientes do sexo masculino (SEEGENSCHMIEDT et al. 20015). O risco de severo dano genético transmissível a gerações futuras foi inicialmente estimado em 1,3% por Sv na população geral. Estudos recentes indicam ser este risco muito menor, sendo considerado sem significância clínica o risco de exposição das gônadas. Doses Efetivas abaixo de 10 mSv representam 4 vezes a dose anual de background que é de cerca de 2,8 mSv por ano, situação em que a possibilidade de cura ou prevenção superariam inteiramente os riscos. Doses Efetivas abaixo de 20 mSv se assemelham ao limite máximo permissível de Dose Efetiva recebidas pelos trabalhadores em uma média aritmética de cinco anos consecutivos, logo esse valor é também considerado aceitável em relação ao princípio de justificação. 

É muito difícil avaliar o risco de tumores induzidos para um caso particular, pois, além dos fatores anteriormente citados, tal avaliação depende da idade do paciente, da área a ser tratada, do volume irradiado e da herança genética. O paciente deve ser informado de que o cálculo desse risco é apenas aproximado e/ou provavelmente superestimado.

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Comentários finais e recomendações

A radioterapia parece francamente subutilizada no tratamento das lesões benignas. Embora o fracionamento seja de curta duração e as doses mais baixas do que as adotadas nas neoplasias malignas, o radiooncologista deverá ter as mesmas precauções que no tratamento de uma doença neoplásica. Além da garantia de acompanhamento em longo prazo, procederá a cuidadosa preparação e completa documentação de todos os tratamentos, com descrição do volume alvo, do plano de tratamento, posicionamento, simulação e controle de qualidade. 

O conceito de dose efetiva na estimativa de efeitos estocásticos não é consensual havendo viva controvérsia quanto a sua real aplicabilidade. Para baixas doses ou baixas taxas de dose, em que a incidência de um efeito não é tão distinta da flutuação estatística no nível normal de ocorrência, não há acordo entre as entidades regulatórias sobre o comportamento do risco em função da dose e 

uma infinidade de modelos pode ser empregada. Além disso, os dados utilizados nos fatores peso de tecido e nos coeficientes de probabilidades de efeitos estocásticos consideram valores médios da população. Entretanto, estudos consideram a Dose Efetiva como um parâmetro importante para a avaliação primária dos detrimentos causados pela radioterapia. Deve-se lembrar da possível radio- indução tumoral, em especial, em pacientes jovens (menores de 40 anos) que devem ser tratados apenas de forma excepcional, após cuidadosa avaliação dos riscos comparados aos benefícios. 

Com o envelhecimento da população teremos um grande número potencial de pacientes para quem o risco de tumores radioinduzidos será irrelevante, podendo a radioterapia representar uma importante alternativa terapêutica. A radioterapia deve ser realizada após criteriosa avaliação, devendo cada centro desenvolver seu próprio protocolo de tratamento, incorporando toda a moderna tecnologia disponível. A aplicação de um termo de consentimento livre e esclarecido para cada enfermidade em particular é necessária, bem como a adoção de estratégias que minimizem a dose nos tecidos sadios (TAYLOR et al. 2015; VAN HOUTTE et al. 2014).


Referências bibliográficas

CNEN. Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação. Diretrizes básicas de proteção radiológica. CNEN NN 3.01. p.22, 2005. 

FREY, B.; HEHKGAN, S.; RODEL, F.; GAIPL, U.S. Modulation of inflammation by low and high doses of ionizing radiation: Implications for benign and malign diseases. Cancer Letters, v. 368, n.2, p.230-237, Abr. 2015. 

HALL, E. J. Radiobiology for the Radiologist. 4. ed. Philadelphia: J.B. Lippincott Company, 2006. 478 p. 

LEER, W.H.; HOUTTEB, P.V.; DAVELAAR, J. Indications and treatment schedules for irradiation of benign diseases: a survey. Radiotherapy and Oncology, v.48, n.3, p. 249–257, Set. 1998. 

ICRP, 1991. 1990 Recommendations of the International Commission on Radiological Protection. ICRP Publication 60. Ann. 

ICRP, 2007. Radiation Dose to Patients from Radiopharmaceuticals. ICRP Publication 103. Ann. 

JANSEN, J.T.H.; BROESE, J.J.; ZOETELIEF,J.; KLEIN, C.; SEEGENSCHMIEDT, H.M. Estimation of the carcinogenic risk of Radiotherapy of benign diseases from shoulder to heel. Radiotherapy and Oncology, v.76, n.3, p.270-277, Set. 2005. 

REICHL, B.; BLOCK, A.; SCHAFER, U.; BERT, C.; MULLER, R.; JUNG, H.; RODEL, F; German Cooperative Group on Radiotherapy for Benign Diseases (GCG-BD). DEGRO practical guidelines for radiotherapy of non-malignant disorders: Part I: physical principles, radiobiological mechanisms, and radiogenic risk. Strahlentherapie Onkologie v.191, n.9, p.701-709, Jun. 2015. 

SEEGENSCHMIEDT, H.M.; MICKE, O., MUECKE, R. Radiotherapy for non-malignant disorders state of the art and update of the evidence-based practice guidelines. The British Journal of Radiology, v.88, n.1051, p.Jul. 2015. 

TAYLOR, R.E.; HATFIELD, P.; MCKEOWN, S.R.; PRESTWICH, R.J.; SHAFFER, R. Radiotherapy for Benign Disease: Current Evidence, Benefits and Risks. Clinical Oncology, v.27, n.8, p.433-435, Ago. 2015. 

THE ROYAL COLLEGE OF RADIOLOGISTS. A review of the use of radiotherapy the UK for the treatment of benign clinical condition and benign tumors. Londres, 2015. Disponível em: http://www.rcr.ac.uk/sites/default/files/publication/BFCO(15)1_RTBenigndisease_web.pdf Acesso em: XX mes. 2015 

TURNER, J.E. Atoms, radiation and radiation protection. Weinheim: WILEY-VCH Verlag GmbH & Co, 2007. 595 p. 

VAN HOUTTE, P.; ROELANDTS, M.; KANTOR, G. Radiotherapy indications for non-malignant diseases in 2014. Cancer Radiotherápie, v.18, n.5-6, p.429-429, Out. 2014.